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“Jogo de cartas marcadas”, diz Luiz Flávio Gomes sobre reforma da previdência

8 de março de 2019 Classista


O deputado federal Luiz Flávio Gomes (PSB/SP) publicou artigo criticando a reforma da previdência proposta pelo atual governo. Originalmente divulgado em seu site oficial, o deputado rebate a nova previdência e diz ser “um jogo de cartas marcadas”, que privilegia os interesses das elites financeiras e econômicas do poder. Confira abaixo:

Se existe algo no Brasil que revela o tamanho da força do verdadeiro Quarto Poder, o financeiro (a mídia é um dos seus braços, posto que aparato de reprodução), esse algo se chama “nova previdência”.

Que fique bem claro: a reforma é necessária por mil motivos, mas não se esperava um desenho tão gritantemente financista e agressivo contra os 99% da população atingidos por ela (de forma direta ou indireta). Precisamos do mundo financeiro assim como da reforma da previdência. O que não necessitamos mais é de injustiças!

Estudo publicado pelos cientistas políticos Martin Gilens (Princeton University) e Benjamin Page (Northwestern University) (ver Dani Rodrik, Valor Econômico 11/9/14) revela que a velocíssima ampliação da desigualdade em todo planeta inflige dois golpes contra a democracia: (i) é cada vez mais intensa a exclusão das classes média e trabalhadoras; (ii) ela fomenta, nas elites do poder, uma política venenosa de sectarismo, fundamentalismo e autoritarismo.

Em regra, as preferências do eleitor médio coincidem com as das elites financeiras do poder. Sua relevância, no entanto, cai a níveis insignificantes quando seus interesses se chocam com os das elites dirigentes. Isso está presente na reforma da previdência.

A verdadeira elite do poder é composta de 1%. Tudo o mais, incluindo as corporações organizadas dos sindicatos e servidores públicos, soma 99%.

Em princípio, como se vê, a nova previdência do Bolsonaro-Guedes aparenta ser um jogo de cartas marcadas. Vamos ver o que vai ocorrer no Parlamento. As elites financeiras garantiriam apoio político para fazer passar o rolo compressor que apresentaram.

Mas como se sustentariam politicamente os apoiadores “de porteira fechada” das duras propostas divulgadas? O que Bolsonaro e todos os apoiadores incondicionais da reforma explicariam para seus eleitores? Não seria uma morte eleitoral privilegiar os interesses do capitalismo financeiro em detrimento dos interesses das classes (i) média, (ii) precarizadas e (iii) excluídas, estas compostas pelos pobres, miseráveis e abandonados?

Dani Rodrik explica o seguinte: quando os políticos abraçam incondicionalmente os interesses das elites financeiras e econômicas do poder, em prejuízo da grande maioria dos seus eleitores, ou seja, quando traem descaradamente seus eleitores, prejudicando-os, eles injetam prontamente na veia do povo os ópios do nacionalismo, do sectarismo, da identidade fundada em valores e simbolismos culturais, da religião, da moralidade e dos moralismos, do fundamentalismo, das envelhecidas ideologias, da rediscussão dos valores familiares, do pensamento não inclusivo, do ataque às minorias, dos preconceitos, do marxismo, do socialismo, das tradições ingenuamente idealizadas e por aí vai.

As disputas políticas “travadas nesse terreno, são vencidas por aqueles que melhor estimulam nossos genes culturais e psicológicos latentes [nossos medos, nossas apreensões, nossos desejos primitivos], não por aqueles que melhor representam nossos interesses” (Dani Rodrik, citado).

Todos os nossos sentimentos de ódio, sectaristas, tribais, polarizados, “obscurecem as privações [e perdas] materiais inerentes aos explorados que as vivenciam em seu cotidiano”. Eles nos fazem esquecer das desigualdades, das iniquidades, das injustiças assim como dos privilégios odiosos das elites dominantes. Pior: inflamam paixões contras as minorias, contra os adversários, criando um clima de guerra de todos contra todos.

Para regimes que representam as elites financeiras e econômicas (frequentemente, corruptos até a medula), “é uma manobra que compensa generosamente nas urnas” (conclui o articulista).

A reforma da previdência evidencia, com todas as suas injustiças (que podem ser corrigidas pelo Parlamento), tanto a submissão incondicional dos seus proponentes às diretrizes do setor mais cruel do capitalismo financeiro, como a necessidade de produzir diariamente uma quantidade hiperbólica de ópios para obscurecer as mentes dos que vão pagar a conta, muitas vezes com as próprias vidas. Haja ópios!

Quer saber mais?

A divisão da sociedade em classes (privilegiadas e precarizadas) não é assunto novo, mas nunca deixou de ser muito complexo. Descrever a velha luta entre elas é mais complicado ainda. O que se sabe é que um dia as elites proprietárias, empresariais e financeiras enquadraram o rei João Sem Terra da Inglaterra e aí dividiram o poder (em 1215).

Depois, no século XVII, fizeram outra revolução (a gloriosa), mataram um rei (Carlos I) e deram mais protagonismo ao Parlamento. Em 1789, na França, cortaram o pescoço do rei (Luís XVI) e da rainha (Maria Antonieta) e a nova classe endinheirada na época assumiu o poder.

A reforma da previdência (uma das necessidades prementes do país em 2019) recolocou o tema da divisão de classes em pauta. A questão central é quem vai arcar com os custos da nova previdência. E quem vai ganhar com ela.

Protagonismo marcante será exercido nessa luta pelos servidores organizados, destacando-se dentre eles os de classe média, que normalmente está alinhada com as elites financistas do poder. Contra elas, agora, está em guerra reativa.

Recorde-se que, no mundo todo, nos últimos 40 anos, diante da brutal concentração de riqueza gerada pelo capitalismo financeiro e tecnológico, a classe média perdeu poder, dinheiro e status. Nos EUA perderam suas casas (mais de 9 milhões de pessoas). A onda de destruição também da classe média, que explodiu nos EUA e na Europa, está chegando ao Brasil.

Pela amplitude e intensidade da proposta de reforma da previdência, está estabelecida uma superlativa luta entre as “elites financistas do poder” (grupos dominantes e governantes) e as classes direta ou indiretamente afetadas.

Levando em conta não apenas a riqueza econômica ou a renda (o capital econômico), senão, sobretudo, o que cada classe representa de verdade nas relações de dominação e submissão, penso que hoje poderíamos distinguir as seguintes (cinco) classes:

(i) no topo está o verdadeiro Quarto Poder (a mídia é apenas um dos seus aparatos de reprodução), composto pelas elites que realmente dirigem a nação em cada momento histórico, posto que contam com efetiva influência nas decisões do país, na divisão do seu orçamento, dos seus gastos, das políticas públicas etc.

As elites econômicas e financeiras (grandes grupos, grandes corporações), que dominam também o poder político, desempenham sobranceiramente o papel de liderança no poder, compartilhando-o, em certos momentos, por exemplo, com militares (caso do governo Bolsonaro) ou com sindicalistas (caso do governo Lula).

Por meio do financiamento de campanhas eleitorais, o Quarto Poder manda normalmente no Executivo e no Legislativo e ainda influencia as cúpulas do Judiciário.

A dominação (a reprodução de privilégios) de um poder sobre os outros só se mantém quando o comando se estende a grandes setores da mídia, aos intelectuais, às escolas, às religiões, aos partidos e por aí vai.

A sombra nascente do Quarto Poder é o Quinto Poder, composto pelas redes sociais; mas quem manda mesmo, por ora, é o verdadeiro Quarto Poder, que é muito organizado. É ele que ocupa o ponto alto do domínio da nação; é ele que está propondo a reforma da previdência (a sétima, depois de 1988);

(ii) abaixo dele (que tem acesso privilegiado ao poder político) estão os grandes proprietários, que contam com capital econômico e cultural, mas não possuem o capital social político (não participam das decisões políticas do país); esses dois primeiros grupos não representam mais que 1% da população; o alinhamento político e ideológico entre eles é quase que absoluto;

(iii) depois vem a real classe média, que tem sua base prioritária no capital cultural; sua característica central consiste na possibilidade de proporcionar estudo de qualidade para seus filhos sem a necessidade de que trabalhem concomitantemente; as três primeiras classes juntas não chegam, muito provavelmente, a 10% da população;

(iv) abaixo da classe média estão os grupos precarizados, que são trabalhadores, servidores e empreendedores com trabalhos ou atividades precários, com nenhuma ou pouca garantia, com riscos contínuos de perda de status, salários e estima social; milhões desses precarizados acham-se desempregados (cerca de 27 milhões, contando os que podem trabalhar e não acham vagas) ou exercem atividades informais; são os que contam com alto risco de rebaixamento, sobretudo nesses tempos de recessão econômica e relações empregatícias fluidas (“líquidas”); mais de 100 milhões de pessoas se enquadram nesse patamar;

(v) por último temos os excluídos ou abandonados, que apenas sobrevivem, que lutam pelo prato de comida do dia; são os miseráveis, os esfomeados, os irrelevantes, os jogados à própria sorte, os jovens que não estudam nem trabalham (23% dos jovens), sem perspectivas de futuro e por aí segue (mais de 60 milhões de pessoas se acham nessa angustiante situação de carência e subcidadania).

A profunda reforma da previdência só não afeta as elites do poder e os grandes proprietários (menos de 1% da população), que não dependem de pensões ou aposentadorias ou assistência social. Todas as demais classes (99%) serão atingidas por ela de forma direta ou indireta (de maneiras diferentes, mas nenhuma escapa). É a guerra das elites financistas do poder (menos de 1%) contra o restante da população (99%).

Os números impressionam (1% contra 99%), mas os choques frontais de classes colocarão em polos opostos as elites financistas do poder, de um lado, e, sobretudo, as corporações organizadas dos sindicatos, das associações de servidores públicos e da classe média, de outro.

Elas contam com “alto poder de fogo”, tanto dentro do Parlamento quanto dentro do Judiciário.

A guerra vai ganhar força desde logo no Legislativo (onde a base do governo ainda se encontra muito desorganizada), mas com certeza vai ter também as etapas da judicialização (muitas normas seriam inconstitucionais).

Desde a Constituição de 88 já tivemos seis reformas da previdência, nos três regimes: Geral, Próprio e Complementar (EC 3/93, 20/98, 41/03, 47/05, 70/12 e 88/15). Mas nenhuma veio com tanta munição financista quanto a atual.

A proposta constitui um cavalar freio de arrumação. Resta saber qual será a intensidade da reação, que já começou. É luta de “gente grande”. Que o Brasil neste século 21 consiga sair vivo desta guerra, que tem como pano de fundo tanto a falência do país como a estagnação da economia.

LUIZ FLÁVIO GOMES, professor, jurista e Deputado Federal – PSB/SP.


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